Um memorial, Três tempos

A proposta para este espaço de memória coloca duas grandes questões em pauta. Em primeiro plano, de que forma o espaço pode ser instrumentalizado para reverenciar o trabalho exercido pelos profissionais da ciência e da saúde em um dos momentos mais delicados de nossa história recente: a pandemia de COVID-19? Por outro lado, como desenhar um memorial que seja um espaço de articulação no campus da Fiocruz Manguinhos, testemunho físico de uma das instituições científicas de maior importância do país? A proposta que apresentamos busca ponderar estes questionamentos e resolvê-los tanto pelo projeto, quanto pelo seu significado.

O projeto estrutura-se no pressuposto de que as estratégias empregadas devem propiciar longevidade à memória do que foi a pandemia para a comunidade médico-científica. Neste sentido, o memorial é encarado como uma ressignificação total da área de intervenção, definindo importâncias tanto aos espaços vazios, quanto ocupados do sítio. Uma sequência de experiências, três tempos informam o partido adotado: confronto, memória e respiro.

I - Confronto com o Desconhecido

O primeiro percurso do memorial é caracterizado por dois eixos de acesso ao terreno, decididamente alinhados com as pré-existências imediatas: ao norte, a portaria com frente de acesso ao campus desde a Avenida Brasil; a leste, o Museu da Vida. Esta demarcação axial cruza perpendicularmente a superfície do corpo d’água existente, orientando a proposta de ocupação. Ambos os caminhos são caracterizados por passagens ora em nível com o terreno, ora em ligeiro declive em direção à água. A estratégia adotada propõe uma tomada de posição pelo usuário: há de se enfrentar o desconhecido e optar por “entrar” no lago, atitude análoga ao confronto das comunidades médica e científica com a doença, a despeito de qualquer perspectiva imediata, à época. Com vistas a ressignificar a presença do antigo chafariz, propõe-se um conjunto de aspersores de vapor de água na porção final do percurso. Aproveitando a própria lâmina d’água como matéria-prima, esta névoa representa a neblina de informações falsas, descredibilização e incertezas que permearam a epidemia no Brasil.

II - Espaço de Memória

A intersecção dos eixos de acesso conformam a implantação de um volume, diáfano por sua natureza material, recinto por sua configuração espacial. Este espaço de memória por excelência é inserido em uma posição estratégica - a clareira que se abre por cima da lâmina d’água, entre as copas das árvores existentes. Como uma bruma vertical pairando sobre a água, a luz do sol incide diretamente sobre este paralelepípedo sem tetos, iluminando física e simbolicamente o espaço, tal qual a ciência, farol que guiou a humanidade de volta ao convívio cotidiano. O espaço de planta quadrada, medindo 4,80m, celebra pela precisão geométrica o rigor científico dos profissionais homenageados, suscitando aos usuários a ponderação sobre a importância de método e acúmulo de conhecimento como instrumento civilizatório.

Ao adentrar neste prisma, um totem horizontal com tampo de aço inoxidável polido e posto no ponto médio da planta a 50cm do piso, reflete o céu descortinado pela clareira, forçando o gesto de olhar para cima e surpreender-se que, mesmo em meio ao nevoeiro, a nitidez também é um caminho possível. Gravada em baixo-relevo neste elemento expositivo, há uma única frase: “A ciência liberta”. Com ampla margem de interpretação simbólica e passível de ser ressignificada ao longo do tempo, ciência aqui está vinculada à reunião de saberes, mas, também, ao nível de (cons)ciência coletiva necessária para que a pandemia de COVID-19 pudesse ser superada.

III - Respiro

Os mesmos percursos que definem acessos ao espaço de memória são utilizados para a saída, descomprimindo o usuário após a experiência sensorial proposta. A ideia de regressar a um espaço totalmente aberto configura, na conceituação deste memorial, uma oportunidade de respiro, a noção de perspectiva e desfrute da vida cotidiana do campus em meio à natureza. Por intermédio de caminhos que ladeiam perimetralmente a lâmina d’água, o vazio que confere sentido à ocupação do espaço de memória torna-se, portanto, um espaço próprio da Fiocruz, densamente arborizado e imerso nas atmosferas de seu novo arranjo espacial.

Como uma metáfora ao desmatamento ostensivo que gerou e pode gerar epidemias ao longo da história, opta-se por não modificar, nem suprimir a natureza do meio em que o projeto se insere, a saber: árvores, arbustos e morfologia do corpo d’água existentes. Pelo contrário, toma-se partido da exuberante flora carioca consolidada para adensar ainda mais o paisagismo, reforçando a beleza da mata atlântica em contraponto ao singelo chão de terra compactada existente. Em resumo, o tempo de respiro busca flexibilizar e propor longevidade ao uso da área de intervenção, uma vez que o espaço de memória não será necessariamente utilizado de forma cotidiana por todos os usuários da comunidade.

Três tempos somados configuram uma experiência completa. Uma proposta holística que, ao ser utilizada, coloca-se como espaço de memória sensorial à pandemia. No contexto global do campus, revela-se como monumento à resiliência, sacrifício e doação dos profissionais da Fiocruz para a ciência e para a sociedade brasileira.

A Memorial, Three Times

The proposal for this space of memory raises two major issues. Firstly, how can the space be instrumentalized to honor the work done by science and health professionals during one of the most delicate moments in our recent history: the COVID-19 pandemic? Secondly, how to design a memorial that serves as a hub within the Fiocruz Manguinhos campus, a physical testament to one of the country's most important scientific institutions? The proposal we present seeks to consider these questions and address them both through the design and its significance.

The project is based on the premise that the strategies employed should provide longevity to the memory of what the pandemic meant to the medical-scientific community. In this sense, the memorial is seen as a complete redefinition of the intervention area, assigning importance to both the empty and occupied spaces of the site. A sequence of experiences, three times inform the adopted approach: confrontation, memory, and breath.

I - Confrontation with the Unknown

The first path of the memorial is characterized by two axes of access to the land, decidedly aligned with the immediate pre-existences: to the north, the entrance with access to the campus from Avenida Brasil; to the east, the Museum of Life. This axial demarcation perpendicularly crosses the surface of the existing body of water, guiding the proposed occupation. Both paths are characterized by passages sometimes at ground level, sometimes slightly sloping towards the water. The adopted strategy proposes a stance by the user: one must face the unknown and choose to "enter" the lake, an attitude analogous to the confrontation of the medical and scientific communities with the disease, despite any immediate perspective at the time. To redefine the presence of the old fountain, a set of water vapor sprinklers is proposed at the end of the path. Utilizing the water surface itself as raw material, this mist represents the fog of false information, discredit, and uncertainties that permeated the epidemic in Brazil.

II - Space of Memory

The intersection of the access axes shapes the implantation of a volume, diaphanous by its material nature, an enclosure by its spatial configuration. This quintessential memory space is inserted in a strategic position - the clearing that opens above the water surface, among the canopies of the existing trees. Like a vertical mist hovering over the water, the sunlight directly hits this roofless parallelepiped, illuminating the space both physically and symbolically, like science, a beacon that guided humanity back to daily life. The square space, measuring 4.80m, celebrates through geometric precision the scientific rigor of the honored professionals, prompting users to reflect on the importance of method and the accumulation of knowledge as a civilizing tool.

Entering this prism, a horizontal totem with a polished stainless steel top placed in the middle of the floor at 50cm high reflects the sky unveiled by the clearing, forcing the gesture of looking up and realizing that, even in the midst of the fog, clarity is also a possible path. Engraved in low relief on this exhibition element is a single phrase: "Science liberates." With a wide margin for symbolic interpretation and subject to redefinition over time, science here is linked to the gathering of knowledge but also to the level of collective consciousness necessary for the COVID-19 pandemic to be overcome.

III - Breath

The same paths that define access to the memory space are used for exit, decompressing the user after the proposed sensory experience. The idea of returning to a completely open space configures, in the conception of this memorial, an opportunity for breath, the notion of perspective and enjoyment of the daily life of the campus amidst nature. Through paths that run peripherally to the water surface, the void that gives meaning to the memory space becomes, therefore, a space of its own for Fiocruz, densely wooded and immersed in the atmospheres of its new spatial arrangement.

As a metaphor for the extensive deforestation that has generated and can generate epidemics throughout history, the decision was made not to modify or suppress the nature of the environment in which the project is set, namely: existing trees, shrubs, and the morphology of the water body. On the contrary, the project takes advantage of the established exuberant Carioca flora to further densify the landscaping, reinforcing the beauty of the Atlantic Forest in contrast to the simple existing compacted earth ground. In summary, the time of breath seeks to make the use of the intervention area flexible and propose longevity, since the memory space will not necessarily be used daily by all community users.

The three times combined configure a complete experience. A holistic proposal that, when used, positions itself as a sensory memory space of the pandemic. In the global context of the campus, it reveals itself as a monument to the resilience, sacrifice, and dedication of Fiocruz professionals to science and Brazilian society.


Memorial da Fiocruz sobre a Covid-19

2024
Igor Campos, Hermes Romão, Filipe Bresciani, Lorena Leonel, Máwere Portela

Rio de Janeiro-RJ
2.503m²
87m²

Hermes Romão

Ano / Year:
Arquitetura / Architecture:


Localização / Location:
Área do terreno / Site area:
Área construída / Built area:

Imagens digitais / Digital Images: